Artigo – “Psicanalistas na política como psicanalistas”, por Romildo do Rêgo Barros
Publicado originalmente em junho de 2018 em http://lalibertaddepluma.org/romildo-do-rego-barros/
Além da ironia
Os psicanalistas, pelo menos é o que sempre se pensou, são irônicos em relação aos grandes ideais políticos, e o apoio que dão a esses ideais tem sido, no máximo, de caráter tático. Em princípio, nenhum ideal os representa, nem tanto porque se ocupam do individual, do um a um, enquanto os grandes ideais se referem a um todo suposto; mas porque o exercício da política, no sentido banal do termo, se faz, quase naturalmente, às custas da verdade.
Mas, como se pode entender o que seria, na prática, uma presença dos psicanalistas (como psicanalistas, não apenas como cidadãos) na política? Podemos partir do seguinte: o funcionamento democrático, que inclui antes de tudo o direito a falas diferentes, é a primeira condição política para que a psicanálise possa “trazer algo para a humanidade”, como se exprimiu Miller.
Se isso é verdade, a luta pela democracia é um dever elementar do psicanalista: não como um grande ideal que nunca será atingido, mas como a prática de uma conversação permanente. Isso não se deve simplesmente ao apego que cada um de nós tem em relação à liberdade, sem a qual, dizia Lacan, “os povos se enlutam”[1]. Deve-se também ao fato de que toda situação durável de autoritarismo degrada o uso da língua, como o demonstrou Victor Klemperer no seu importante estudo sobre a linguagem burocrática no Terceiro Reich[2]. E os psicanalistas são, creio poder dizê-lo, responsáveis em parte pelo bem dizer, individual e coletivo.
O diabo existe
Jacques-Alain Miller coordenou, como se sabe, uma ampla luta contra a candidatura de Marine Le Pen, do Front National, à presidência da França. Vários foros de discussão foram organizados, dezenas de pessoas tomaram a palavra, e a partir deles pudemos reforçar a ideia de que entre os vários segmentos da democracia de um lado, e o fascismo do outro, há um abismo que é preciso aprofundar. Na imagem usada pelos franceses, era preciso não permitir que Marine Le Pen e seu partido fossem ‘desdiabolizados’. Era preciso não permitir que vigorasse a velha tática do diabo, apontada por Baudelaire, de tentar nos convencer de que não existe.
O fascismo existe, sob formas sem dúvida diferentes dos anos trinta e quarenta, e alimenta sempre a ideia de que a política e o poder são, antes de mais nada, aplicações de uma violência seletiva, isto é, de uma violência que rompe seletivamente com o universal da lei. Para o fascismo, basta para isso que se invente uma maioria mítica, chamada, por exemplo, de a ‘gente de bem’ (esta expressão foi usada no Brasil, no auge das manifestações pela destituição da presidente Dilma Rousseff), e que se contraponha a essa maioria mítica uma escória que a rigor não deveria existir. Senão como escória, justamente.
Quando, por exemplo, o deputado Jair Bolsonaro, representante da extrema direita brasileira e partidário da ditadura, afirma em uma conferência que os ‘quilombolas’ (descendentes dos antigos escravos fugidos do cativeiro) “não servem para nada, nem para procriar”, ele está incentivando o extermínio, saiba disso ou não.
Por incrível que possa parecer, isso funciona como propaganda, porque carrega em si o verdadeiro alimento do fascismo: o ódio da diferença (a outra face do “ódio de si”, que Eric Laurent pôs em evidência recentemente), sentimento pré-político cuja fronteira é traçada por quem tem o poder de traçar: do lado de cá a ‘gente de bem’, e do outro, aqueles aos quais se supõe um gozo bárbaro: índios, favelados, imigrantes, homossexuais e LGBT em geral, membros das religiões afro-brasileiras, nordestinos, etc…
Essas diferenças provavelmente nunca serão eliminadas –e talvez muitos dos fascistas o saibam–, mas, pouco importa, é necessário para eles que essa bandeira permaneça no horizonte, como promessa de uma conciliação final da suposta elite.
Romildo do Rêgo Barros é psicanalista, reside no Rio de Janeiro.
Membro (AME) da EBP-AMP, com trabalhos publicados em varias revistas do Campo Freudiano. É autor notadamente de “Compulsões e Obsessões – Uma Neurose de Futuro” – Editora Civilização Brasileira.
Notas bibliográficas:
[1] Lacan, J., “Kant com Sade”, em Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, p. 779.
[2] Klemperer, V., LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Editora Contraponto, Rio de Janeiro.