Artigo: “Ética: Meios e Fins”, por Mario Guerreiro
Suponhamos que, em plena guerra, um soldado recebe uma ordem absurda, podendo resultar na morte de muitos companheiros e sem nenhum ganho militar. Que faria ele? Se ele não cumprir ordem de um superior hierárquico, irá para uma corte marcial. Se ele cumprir será condenado por sua consciência moral.
Caso ele tenha optado pela primeira alternativa, ir para uma corte marcial não implica necessariamente que ele será condenado. Pode ser absolvido se seus juízes entenderem que se tratava de fato de uma ordem absurda e inconsequente e, neste caso, não há a obrigação de cumpri-la. Todavia, a corte é soberana e se ela decidir que a ordem, apesar de altamente arriscada, podendo mesmo acarretar muitas mortes, o soldado será condenado.
Mas caso ele tenha optado pela segunda alternativa, ele não terá nenhuma responsabilidade sobre perdas de vida e perdas materiais. E isto porque a responsabilidade por uma ordem cabe única e exclusivamente a quem a deu.
Desse modo, as duas opções são: não cumprir a ordem, para não contrariar a sua consciência e ir a uma corte marcial, onde corre o risco de ser condenado ou cumprir a ordem e contrariar sua consciência moral, apesar de estar isento de culpa!
Se estiver em jogo uma ética do tipo deontológico [deontos em grego é “dever”] como é, por excelência, a moral kantiana, em toda ação o agente deve ouvir o imperativo categórico, uma voz vinda da mais íntima consciência, dizendo: “Tu deves fazer isso”, ele tomará sua decisão sem levar em consideração quaisquer outros fatores, tais como o contexto da ação, as previsíveis consequências da ação, etc.
Se o soldado estiver imbuído de uma orientação deontológica, que decisão tomará ele? Ora, a que estiver de acordo com o imperativo categórico, só para não o contrariar, ou seja: ele se recusará a cumprir toda e qualquer ordem que não obedeça a voz do imperativo categórico.
Para que se tenha uma ideia do caráter radical da ética do tipo deontológico, como é o caso típico da moral kantiana, vejamos a posição de Kant em relação à mentira. O que diz o imperativo categórico? “Não mentir jamais”.
Nem que seja uma mentira para salvar a vida de alguém? Nem que seja uma mentira para não parecer grosseiro? Nem que seja uma mentira de um governante, para evitar grande pânico na população do país?
Suponhamos que Kant fosse convidado para jantar na casa de uma elegante anfitriã de Königsberg. No meio da refeição, ela perguntasse educadamente: “Gostou do assado, Her Kant?”. O assado estava delicioso e, neste caso, Kant diria: “Oh sim, madame, uma delícia!”. Mas como sói ocorrer, para o desagrado da dona de casa, o assado tivesse salgado e queimado…?
Difícil decisão kantiana: Se ele fosse sincero e dissesse a verdade, não estaria mentindo. Se ele se permitisse dizer uma mentira, ainda que fosse uma “mentirinha branca”, teria rejeitado o imperativo categórico, princípio básico de sua moral.
Para ser coerente, Kant não devia mentir: diria algo mais ou menos assim: “Está salgado e queimado. Uma gororoba intragável!”. Seria inevitável que a atenciosa anfitriã o considerasse um grosseirão, sem educação.
Contudo, as éticas do tipo deontológico, que não levam em consideração (1) intenções do agente que se materializam na ação, (2) contexto em que ele age, (3) consequências previsíveis da sua ação, que podem acarretar sérios problemas. Por não levarem em consideração (1), o Direito não estaria autorizado a fazer distinção entre um homicídio culposo e um doloso, (2) Por não levar em consideração os diferentes atores que estão envolvidos com a ação em diferentes situações e (3) As consequências pretendidas da ação.
Por outro lado, as éticas do tipo teleológico (do grego telos, finalidade) dão mais ênfase às previsíveis consequências, finalidade última da ação humana. É claro que as imprevisíveis, assim como as não-pretendidas estão fora de questão. Ninguém pode ser responsabilizado por ter feito algo cujas consequências não podiam ser previstas por ele, não eram possuidoras de um mínimo de probabilidade.
Teleológica por excelência é a ética de Aristóteles, para a qual todos os homens procuram um bem e o bem supremo é a felicidade (eudaimonia). Segundo o filósofo, os bens se dividem em bens instrumentais e bens intrínsecos.
Bens instrumentais são os bens que funcionam em função de outros bens. Bens intrínsecos são os bens em si mesmos. Cabe perguntar: “Para que você quer x?”, como por exemplo: “Para que você quer dinheiro?” Algumas respostas cabíveis: “Ora, quero dinheiro para comer, me vestir e pagar minhas contas”; “Quero dinheiro para ter muitas mulheres”. “Quero dinheiro para ser feliz”.etc.
Estas e outras são cabíveis, porque dinheiro é um bem instrumental, é um instrumento de troca, que substituiu o sistema de escambo em que se trocavam coisas por outras coisas. No entanto, é inteiramente descabido perguntar :”Para que você quer ser feliz?”
Aristóteles diria que é descabido, porque a felicidade não é um bem instrumental, mas sim um bem intrínseco e derradeiro. Ninguém quer ser feliz para alcançar outra coisa. A felicidade é o último fim da ação humana.
Para que uma ação seja considerada boa no sentido ético, temos que levar em consideração os meios e os fins. Os fins não justificam os meios, ainda que sejam muito boas as finalidades. Por exemplo: não resta dúvida que ajudar os necessitados é bom, mas assaltar um banco e distribuir o dinheiro entre os que necessitam dele, é uma má ação. Não há nada que justifique alguém se apoderar do que não é seu, mesmo que seja para distribuir entre quem realmente precise. Atentemos para o seguinte argumento:
Dinheiro é uma finalidade muito boa.
Prostituição bem administrada dá muito dinheiro.
Logo: Transforme sua casa em um rendez-vous(puteiro de primeira classe),
Ponha sua mulher como cafetina, suas três filhas atendendo aos clientes e
Controle a entrada da grana.
Garanto que o argumento acima é impecavelmente lógico. A conclusão decorre das duas premissas. O fim está adequado aos meios. Se você não concordar com a conclusão, não fará isto por nenhuma razão lógica, mas sim por questões legais e morais. Legais ,porque a prostituição não é crime, mas a exploração da mesma é crime de lenocínio. Moral, porque se é uma canalhice explorar uma profissional autônoma, maior canalhice ainda fazer isto com sua esposa e filhas.
E decorre do argumento acima que, caso ele seja rejeitado por questões de ordem moral, você terá que rejeitar a sentença que caracteriza o pensamento de Maquiavel, embora o próprio nunca tenha se expressado nestes termos: Os fins justificam os meios.
Até o surgimento de Nicolau Maquiavel, era predominante na civilização ocidental a ideia aristotélica de que a política é uma extensão da ética, mas graças a Maquiavel a teoria e prática da política foram separadas da ética.
Desse modo, da ética na política chegamos à titica na política.
Mario Guerreiro é doutor em filosofia pela UFRJ