Cidadômetro
MERVAL PEREIRA
O Globo – 05.09.2010
Nesses dias em que predomina a percepção de que estamos fragilizados como cidadãos, impotentes diante das seguidas demonstrações de que um órgão do Estado brasileiro como a Receita Federal, que deveria ser o guardião de dados pessoais de cada um dos contribuintes, está exposto à ação de quadrilhas que compram e vendem sigilo fiscal e, sobretudo, à manipulação política, vale a pena discutir o que é possível fazer para reforçar a cidadania contra a leniência (ou cumplicidade) do Estado.
O publicitário Jorge Maranhão, dedicado à causa da cidadania e que tem o site “A voz do cidadão”, onde põe em debate os direitos e os deveres de um cidadão, está planejando colocar circulando pelas cidades do país o Cidadômetro, concebido como uma complementação do Impostômetro que mede em São Paulo o quanto de impostos o cidadão paga, que vai bater R$ 1 trilhão antes do fim do ano.
Assim como o relógio que mede os impostos, localizado na Avenida Paulista em, São Paulo, procura chamar a atenção do consumidor para o tamanho de nossa carga tributária, Maranhão quer fazer o que chama uma “medida de cidadania”, tanto no sentido de iniciativa quanto de mensuração propriamente dita.
O projeto procura levar o debate público para a rua, para o cidadão comum, estimulando a pluralidade de opinião. Uma espécie de “Ágora ambulante”, sonha Jorge Maranhão, referindo-se ao o espaço público na Grécia antiga onde ocorriam discussões políticas e os tribunais populares.
A idéia é testar nas ruas se você é um cidadão tão exemplar quanto imagina. Maranhão acha que o problema da Receita Federal “é exemplar do que acontece hoje na política brasileira, onde há um claro interesse corporativo que confunde instituições do Estado, que devem servir mais aos cidadãos que pagam impostos, do que aos governantes”.
É preciso, segundo ele, entender que as instituições do Estado são perenes e que “ou se constrói a democracia com instituições fortes, ou vamos deixar espaço para que venha um tirano ocupá-lo, tanto faz se é de direita ou de esquerda”.
A própria reação dos governistas, que consideram que as quebras de sigilo fiscal ocorridas nas agências da Receita no ABC paulista não terão repercussão no eleitorado, já que a grande maioria dos eleitores nem mesmo declara o imposto de renda, é uma demonstração de como não se leva em conta os direitos dos cidadãos.
“O que estamos fazendo para aperfeiçoar as instituições como a Receita Federal, para nos apropriarmos publicamente das instituições”, pergunta Maranhão.
Ele lembra que até bem pouco tempo tínhamos “aquele sensato temor em relação à Receita Federal, à Polícia Federal, que eram vistas como instituições sérias, as famosas “carreiras do Estado”.
Hoje o temor saudável transformou-se em receio de que essas mesmas instituições abusem de seus poderes contra qualquer cidadão que seja considerado um “adversário”.
Ou que elas estejam a serviço de interesses privados criminosos, quebrando sigilos fiscais com fins comerciais ou grampeando conversas telefônicas.
Maranhão está convencido, no entanto, de que a opinião pública brasileira hoje quer mais questionar e perguntar do que “ouvir a empulhação das autoridades”.
As afirmações das autoridades nesse caso da Receita não são de políticas públicas, mas de governo. Jorge Maranhão dá o processo de construção da Lei da Ficha-Limpa como um exemplo de atuação da cidadania que interferiu objetivamente na vida política nacional.
Ele se engajou na campanha da Ficha-Limpa, colocando sua ONG A Voz do Cidadão ao lado de outras 50 ONGs, entidades e movimentos que atuaram formando o Movimento Contra a Corrupção Eleitoral (MCCE).
“Conseguimos superar barreiras corporativas dentro do Congresso Nacional, fomos inicialmente recebidos a pedradas”, lembra Maranhão.
Para ele, não é apenas a cidadania que é um valor corrompido no Brasil, são todos os valores. “A questão brasileira não é a corrupção política, mas a corrupção dos valores”.
Isso gera a confusão do público com o privado, do Estado com os programas de governo. O Cidadômetro pretende sair pelas ruas das cidades – inicialmente no Rio de Janeiro – para perguntar ao cidadão comum: “Você transforma sua indignação em uma arma de engajamento?” ; “Você ocupa a calçada com seu carro, mas não gosta que o camelô ocupe a calçada?”.
A Voz do Cidadão definiu três tipos de cidadão: o “solidário”, que deseja participar, mas o faz mais por caridade, convicção moral ou espírito humanitário do que imbuído de uma plena consciência de seu papel na sociedade.
O “consciente”, que sabe o seu papel na sociedade e tem posição crítica em relação a governantes, gestores públicos e políticos, mas não passa disso e acha que tudo se resolve com o Estado.
E o “atuante”, com base na percepção crítica que o cerca, não só pensa como age em direção à cobrança de resultados e à fiscalização de diferentes esferas de poder público, sempre estimulando os outros a fazerem o mesmo. Este seria o Cidadão Exemplar.
Jorge Maranhão sonha em levar o caminhão do Cidadômetro para todos os lugares do país, inclusive Brasília. A questão da ocupação dos espaços públicos é replicável no Brasil inteiro; a demagogia na Favela do Bumba, em Angra dos Reis, construída sobre um aterro sanitário, que foi destruída nas chuvas, se reproduz em vários estados do país.
A versão completa do Cidadômetro teria ferramentas eletrônicas de interação, que divulgariam as respostas em tempo real.
Haveria também totens montados em estacionamentos de shoppings centers, supermercados, campi universitários. Com base nas respostas, será montado um Índice de Consciência de Cidadania.
Tudo com o objetivo final de estimular o cidadão a agir como responsável pela fiscalização do espaço público onde vive.
Fonte: O Globo